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António Sousa Homem

Crónicas de um reaccionário minhoto.

António Sousa Homem

Crónicas de um reaccionário minhoto.

04/12/13

Uma espécie de vigilante de um museu de província

Por algum motivo que me tem escapado nos últimos sessenta anos, os casos de celibato multiplicaram-se na família, ao longo de várias gerações. O assunto ou nunca mereceu comentários – ou eu não quis ouvi-los depois de dobrar os quarenta e de me ter conformado com essa existência medíocre e relativamente solitária, longe da puericultura, das disputas conjugais e das alegrias do matrimónio. Do Tio Alberto, bibliófilo e gastrónomo de São Pedro de Arcos, todos conhecíamos a sua relação com uma princesa do Cáspio (hoje sepultada em Genebra, segundo a sua vontade), e sabíamos que, mal despontassem as primeiras neblinas de Agosto, ele partiria, discretamente, para atravessar as fronteiras que o separavam das flores do seu romance.

À Tia Benedita, legitimista da família e uma espécie de marco geodésico de todas as excentricidades dos Homem, não agradavam estes exemplos. Ela considerava que o celibato obrigava os seus padres de Ponte de Lima (a quem conhecia os flagrantes mais criticáveis), mas deslustrava a gente de casa como se tivesse sido recusada no altar. Mas a família conhecia casos ambivalentes. A viuvez, na flor da idade, da Tia Henriqueta, fez supor um segundo casamento; ilusão: permaneceu solitária, no casarão de Vila Praia de Âncora, com a sua cozinha perfumada pela melhor culinária do Alto Minho e os rumores de uma paixão sáfica que emprestava ao seu riso um tom de melancolia aristocrata. O meu avô, administrador de quintas no vale do Douro, falava da sua viuvez como de um estádio de repouso entre os afazeres do escritório. A própria Tia Benedita, viúva aos cinquenta, dedicou o resto do seu tempo à religião, aos retratos do senhor Dom Miguel e à jardinagem (de gosto duvidoso, segundo o velho Doutor Homem, meu pai).

Mas ela desconfiava: achava que as portas do celibato eram apenas uma passagem obscura para a estroinice e as tentações maçónicas, porque – sem rei a sério, como ela supunha que existisse antes de 1820 – o mundo estava abandonado à sua sorte, o que significava que tudo estaria condenado a ser corroído pelo bolchevismo, pela imoralidade e pela República, uma trindade que pretendia ver em todos os esconderijos do seu planisfério.

Havia nisto um certo exagero. Com o passar dos anos, a família desinteressou-se dos velhos princípios. O velho Doutor Homem, meu pai, era um dândi da Foz portuense. Eu, seu filho, limitei-me a escolher o caminho mais fácil. Hoje, sou apenas o guardião do retrato de Dom Miguel, uma espécie de vigilante de um museu de província.

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