A romagem a Ponte de Lima
A melancolia do velho casarão de Ponte de Lima não vem dos seus granitos seculares nem dos corredores por onde entrava aquela luz ténue, filtrada por reposteiros que impediam a entrada do Verão pleno, total e do seu calor minhoto. Bem vistas as coisas, sou o único testemunho desse tempo que terminou sem glória e sem arrebatamento, discretamente, num fim anunciado pelo andamento do mundo.
O retrato de Dom Miguel poderia ser outra das testemunhas da grandeza e orgulho da família – periodicamente cuidado em Braga (ironia das ironias: é para lá transportado, de dois em dois anos, pela minha sobrinha Maria Luísa, a esquerdista da família). Mas a crueldade da política arrastou-o nos últimos duzentos anos apenas nas nossas recordações e numa fidelidade rara e incompreensível, só possível no Minho e numa família que aprendeu o caminho das travessias do deserto e que mantém ali dependurado o “mais belo dos príncipes”, como sustentava a Tia Benedita – um excesso que se desculpa numa senhora que se recusava a viajar até Tuy. Os Homem, orgulhosos das suas alianças, não o esqueceram nem deixaram de o honrar.
Por isso, em Junho a família prepara a sua romaria anual até Ponte de Lima, depois de ter achado – há uns anos – que o calor de Agosto era demasiado inclemente para suportar a peregrinação. Trata-se de uma visita anual a esse velho casarão de granitos e heras escuras, onde os Homem de outros séculos viveram períodos de felicidade e irrelevância, ignorando a imprensa, a internet, o défice, a educação sexual nas escolas e o constitucionalismo. Vivi parte desses tempos, nos Verões da infância, entre os seus muros que tombaram e foram reerguidos, e tombaram de novo, e de novo foram levantados. Foi esta a nossa vida: assistir à queda, reerguer ruínas, passar discretamente, ser grato.
O preço desse heroísmo discreto foi elevado, por vezes. Um primo afastado decidiu, um dia, para vingar uma afronta à pátria, anunciar – na longínqua Macau – a invasão da China. Fê-lo à revelia de avisos sensatos e da ausência do governador; a China não moveu uma pálpebra: contratou uma divisão de bandidos e dinamitou o navio que, a meio do Rio das Pérolas, se preparava ainda para içar o estandarte. Ainda hoje se fala nos “miguelistas de Macau” como de um grupo de visionários improváveis, para não dizer mais. É em nome dos visionários improváveis que, todos os anos, abrimos os reposteiros de Ponte de Lima e regressamos ao casarão. A luz entra, ilumina o passado.