A vida privada e a sua virtude
«A Tia Benedita, por exemplo, evitava saber o que não lhe agradava. Ela imaginava Ponte de Lima, onde viveu e morreu, sitiada pela imoralidade, pelo bolchevismo e pela república.»
Não me lembro de, à mesa de casa, se falar de vida privada. Não existia. O velho Doutor Homem, meu pai, tinha – pela hora da sobremesa, antes do café – o pequeno gosto da maledicência, não da maldade. Havia um maravilhoso resto de humor nesses apontamentos, com vítimas desenhadas com pormenor, moldadas sem piedade, arrastadas com a colher do pudim.
Tudo tinha a ver, dizia o velho Doutor Homem, meu pai, com “a exibição da alma”, um adereço que devia guardar-se para o interior das casas, onde estivesse a salvo da vulgaridade. Discutir a vida íntima era matéria para não mais que duas pessoas, num recato inviolável, talvez com aquele toque de soberba e até de misantropia fingida.
O princípio foi levado tão longe que, quando a minha sobrinha Maria Luísa anunciou que ia divorciar-se pela terceira vez, havia gente que não sabia do segundo casamento. Era, naturalmente, um exagero indesculpável numa família que assistiu a escândalos, protagonizou alguns (casamentos roubados, desgostos pueris, singularidades do Alto Minho) e tratou da vida como se os hibiscos fossem eternos – sabendo que não eram.
A Tia Benedita, por exemplo, evitava saber o que não lhe agradava. Ela imaginava Ponte de Lima, onde viveu e morreu, sitiada pela imoralidade, pelo bolchevismo e pela república. Na verdade, nunca conheceu nenhuma das coisas. Limitou-se a verificar que havia coisas que não lhe agradavam e que o tempo passava sobre o retrato do senhor Dom Miguel ao fundo do corredor de granitos e reposteiros, uma presença tão banal e consentida que é hoje, periodicamente, entregue aos cuidados de Maria Luísa, a eleitora esquerdista da família – que o leva a Braga para limpeza.
Percebo que Maria Luísa, com o tempo, passou a apreciar esta discrição (antigamente, ela supunha que se tratava de hipocrisia): nunca foi perguntada sobre os seus amores nem os meus sobrinhos sobre os passeios pelo pinhal, onde suponho que procedem a cerimónias rituais para fumar haxixe.
O que não existe, não me incomoda – apenas me surpreenda que exista. Mas pouco. Desde a ida do homem à Lua e da invenção do biquíni brasileiro que a tranquilidade conservadora de Moledo persiste como uma bênção acolhedora. Limita-se a fazer de conta que as coisas estão bem feitas.
Dona Elaine, a governanta e vigilante deste eremitério, diz que o mal de hoje são as telenovelas. Ela acredita que, a sul de Viana, atravessando o Lima, o mundo anda num grande desconcerto. Acha-o normal. A arte está em escondê-lo com virtude.
Publicado no Correio da Manhã | Domingo, 24-11-2013