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António Sousa Homem

Crónicas de um reaccionário minhoto.

António Sousa Homem

Crónicas de um reaccionário minhoto.

04/12/13

A inútil vaidade de um autor

Tirando o trio constituído pela minha sobrinha Maria Luísa, pela Dra. Celina (a nossa bibliotecária de Caminha) e por Dona Elaine (a governanta do eremitério de Moledo), o Dr. Boavida (o meu editor na Bertrand) alimenta como ninguém a minha vaidade de nonagenário.

Se bem que nunca leia as minhas crónicas (as telenovelas exigem-lhe uma atenção cada vez mais redobrada), Dona Elaine continua a achar que o mundo além de Moledo tem muito pouco préstimo – e periodicamente relembra o convite para, vai para quase quinze anos, me candidatar a autarca. A Dra. Celina, que acaba de organizar uma exposição (que visitei, apesar do Inverno) sobre a beleza do fundo do mar de Moledo, insiste em que eu devia dar ordem aos papéis que compõem o meu há muito anunciado guia do Minho litoral. Finalmente, Maria Luísa dispensa-me os seus sábados em severos passeios à beira do mar, o que eu suponho ser uma nobre concessão da sua juventude a um velho que lhe alimenta parte da biblioteca com livros publicados há nunca menos de cinquenta anos. Este trio, gentil e dedicado, mantém a minha vaidade estabilizada em níveis que ainda se podem considerar decentes.

Esta semana o Dr. Boavida acrescentou-lhe um ponto fatal, anunciando-me, por telefone, que ia enviar um cheque a fim de “pagar os direitos de autor” dos meus dois últimos livros, e que eu devia enviar “o recibo”. Além de me surpreender, a notícia empresta um pouco de dignidade ao meu papel de Matusalém minhoto, e só temo que o senhor ministro das Finanças (a menção ao “recibo” alertou-me para a sua existência) me descubra na húmida penumbra dos pinhais de Moledo a fim de cobrar impostos suplementares a um velho que nunca lhe deu problemas de maior.

“O senhor doutor não se aflija, que também não é um Dan Brown, infelizmente”, descansou-me o Dr. Boavida, quando lhe coloquei a questão. “Mas ainda dá para uns jantares a preços de 2013.”

Conferi que ainda daria para uns jantares e apressei-me a convidar a minha sobrinha e a Dra. Celina (Dona Elaine recusa-se a jantar fora da sua circunscrição) para a mesa do Ancoradouro, o único restaurante – em todo o Minho – que está fora da alçada do meu médico de Viana. A vaidade deixa-nos perplexos se nos olhamos ao espelho, mas é um tempero que se deve usar de tempos a tempos. Foi ali, à mesa, quando a Dra. Celina comentava com Maria Luísa sobre qual seria a capa do próximo livro, que descobri ter acabado de vender a alma ao diabo. O Dr. Boavida não tem culpa.

03/12/13

A austeridade ou as botas nos pinhais de Moledo

A minha sobrinha Maria Luísa acha que eu devo comprar umas botas novas para atravessar mais este Inverno; as que uso para os nossos passeios de sábado foram compradas há mais de vinte anos numa sapataria de Caminha (ela insiste que foi em Viana, mas não é verdade) e, embora não se ressintam do tempo nem do uso que lhes foi dado, estão ligeiramente fora de moda. Tentei explicar que “estar ligeiramente fora de moda” é uma actividade a que me tenho dedicado com algum empenho desde o fim da minha juventude, mas percebi que o cerne da discussão não estava nas botas (que suportam estoicamente os caminhos húmidos dos pinhais de Moledo), propriamente ditas, e sim na sua existência e longevidade – o que fazia delas um “assunto colateral”: “O tio venha comigo a Viana e, para acabarmos com a discussão, compramos umas botas.”

Havia duas saídas: ou me recusava a ir a Viana, com o argumento de que as “botas velhas” haviam sido compradas em Caminha; ou lhe recordava que a austeridade é um valor nobre que precisa de exemplos, provas e práticas – ou seja, mais do que uma solução para a economia do país, é um modo de vida e um princípio de elevado rigor moral, o que implica pouparmos as nossas botas e só as trocarmos por umas novas em estado de absoluta necessidade. Não valendo a pena insistir acerca da identidade da sapataria (se em Viana, se em Caminha), estava também fora de causa iniciar uma disputa filosófica, com citações de Emerson e Séneca – a propósito de calçado de Inverno. De modo que me preparei para a viagem, como um tio-avô obediente e fragilizado.

Estes factos coincidiram com a chegada da “pequena holandesa”, como é conhecida Isabelle, a namorada do meu sobrinho Pedro, que periodicamente vem de Haia até Moledo e já não tem pudor em mostrar como os portugueses a desconcertam. Foi ela que começou; à sobremesa, lembrou que os holandeses vão este ano pagar mais impostos (recebeu uma carta da administração fiscal a anunciá-lo) a fim de suportar os custos “dos países gastadores”. Maria Luísa não gostou que a jovem frísia viesse lembrar a infâmia – e acusou a austeridade de estar a “matar o país aos poucos”. Por mim, limitei-me a lembrar que o velho Doutor Homem, meu pai, acreditava que a Inglaterra tinha sobrevivido aos efeitos da guerra devido aos hábitos de austeridade locais.

Isabelle arregalou os olhos (coisa que faz quando pretende mostrar-se espantada) e declarou que a austeridade era uma coisa séria. “Por exemplo”, começou então, “imaginemos que eu tenho umas botas.” Maria Luísa olhou para mim, semicerrando os olhos.

 

 

03/12/13

Sobre a velha e a nova ortografia

 

É muito raro – ou porque já não tenho idade ou porque nunca tive feitio –eu pisar o risco. A última vez que fui acusado de “pisar o risco” ocorreu há uns meses, quando a D. Fernanda Cachão me telefonou do jornal, em certa terça-feira tardia, lembrando-me da necessidade de “mandar a crónica”. D. Fernanda foi generosa e tentou diminuir a minha culpa, associando-se ao cronista e informando que “estávamos”, ambos, “a pisar o risco, senhor doutor”.

Foi por isso com surpresa que atendi o seu telefonema na semana passada, em vésperas do Natal, porque a crónica “já tinha seguido” (o que prova o quanto me habituei à linguagem do jornalismo moderno, feito de prazos e de contagem de palavras). Não era isso; D. Fernanda agradecia a crónica mas lembrava que o jornal ia adoptar o Acordo Ortográfico – e que era preciso decidir se eu preferia “a antiga ortografia”.

O assunto nunca se tinha colocado. Vagamente, por piada, à mesa e em hora de maledicência, falava-se do Acordo Ortográfico como de uma baleia que tivesse dado à costa nos areais de Ofir. Para todos os efeitos, sempre julguei que o Acordo Ortográfico fosse uma excentricidade do professor Cavaco e do governo do eng.º Sócrates (porque assentava bem a ambos – a um, na falta de sensibilidade; a outro, na ignorância), com a ajuda de filólogos a quem o Prof. Lindley Cintra tinha dado má nota. O caso é que sempre mantivemos que o assunto não era para levar a sério. Engano profundo, o meu; a Dra. Celina, a nossa bibliotecária de Caminha, informou-me que era para tomar a sério o atrevimento e que havia, mesmo, um decreto a marcar o prazo para mudarmos de alfabeto.

Ora, de entre as coisas que me não assustaram ao longo da vida fazem parte a ortografia brasileira e as mudanças na ortografia portuguesa. A Tia Benedita, por exemplo, nunca mudou de ortografia supondo que o senhor Dom Miguel não a teria autorizado; o tio Alberto, bibliófilo e gastrónomo de S. Pedro de Arcos, escrevia tão bem que não precisava de regras ortográficas; o velho Doutor Homem, meu pai, recorria a dicionários e a Camilo para tirar dúvidas, embora continuasse a pensar em inglês; quanto aos meus sobrinhos, tirando Maria Luísa, suponho que não escrevem. Quando, no escritório, chegava carta dos nossos correspondentes brasileiros, limitávamo-nos a sorrir do samba que vinha nas entrelinhas e da sintaxe do século XIX.

“E optamos por que ortografia?”, perguntava D. Fernanda, angustiada, do outro lado. “Pela antiga”, murmurei com medo de ser repreendido. “Pela da Tia Benedita?” Antes fosse.

03/12/13

Uma história de outros tempos

O velho Doutor Homem, meu pai, nunca me perguntou se eu tinha deixado o meu coração no Rio de Janeiro daqueles anos, mas suspeitou que essa temporada carioca tinha mudado um pouco a minha vida. O saudoso Hotel Glória guardou por algum tempo a inútil gabardina que deixei esquecida sobre uma cadeira no quarto que ocupei durante três meses, sem a ter usado uma única vez; depois, deve ter depreendido que o seu dono nunca voltaria para buscá-la. Nunca voltei, nem poderia. À minha sobrinha Maria Luísa, que imagina quase todas as histórias de amor dignas de romance, tive de explicar o que era o mundo da época – a acrescentar ao complexo de deveres e temores que era natural apoderar-se de um português fora de portas. Sim, houve algum temor a mais; foi ele a vencer o coração, que ficou – como, sábio e discreto, suspeitou o velho Doutor Homem, meu pai – no Rio de Janeiro, algures na Copacabana enevoada da última semana daquele trimestre.

A família tinha-me enviado ao Rio sob o pretexto de contactar os nossos correspondentes na então capital brasileira, mas a verdade é que a viagem fora prescrita por Dona Ester, minha mãe, como um medicamento apropriado para cauterizar feridas recentes, um noivado desfeito e um temperamento transtornado pela melancolia da passagem à idade adulta. O escritório dos advogados que tratavam dos nossos negócios do outro lado do Atlântico era uma fortaleza dos anos trinta que sobrevivia prosperamente nos anos cinquenta, ocupado por colarinhos e fatos de corte francês. Foi nesse cenário que a conheci, como uma luz passageira que estava destinada a ser – como acabou por ser – definitiva. Durante semanas aprendi com ela (uma jovem nunca deixou de ser jovem nas minhas recordações, mesmo quando constituiu família e, mais tarde, me enviou fotografias dos seus filhos) que, para lá dos deveres e dos temores, havia uma raríssima beleza na fragilidade da vida. Nessas semanas em que vivi, emprestada, a leveza dos crepúsculos cariocas, despedi-me várias vezes do meu destino; de cada vez que, à noite, me apresentava diante da janela do meu quarto, naquele hotel que – como eu – nascera velho e coberto por um manto de solenidade, encarregava-me de afastar a tentação de seguir o meu coração. Descobri tarde demais que não se tratava de uma tentação mas sim de outra vida, e que eu poderia escolhê-la se fosse outro ou se estivesse na disposição de correr todos os riscos da minha idade. Foi, provavelmente, o maior pecado da minha vida. Regressei a Portugal, aos meus deveres e temores. Soube muito depois que Dona Ester, minha mãe, nunca me perdoou.

 

03/12/13

O meu avô, antes de Adam Smith

 

 

Chateaubriand era prezado pelo meu avô paterno que gostava dele sobretudo porque, durante a revolução francesa e o terror da época, o autor de O Génio do Cristianismo terá partido para a América e, depois, para Inglaterra, voltando as costas à “modernidade” e à democracia; acessoriamente (possuía a edição de Saint-Beuve), mencionava por vezes as suas páginas sobre a velhice e a idade madura. Ele partilhava, como o génio romântico, da melancolia de envelhecer num mundo desconhecido e de que pouco se gostava. Administrador de quintas no Douro, sentia-se no seu ambiente quando partia da velha estação de São Bento e sabia que ia pernoitar para lá da Régua. De três em três meses repetia a viagem e, sempre que podia, concluía o percurso em Barca d’Alva, onde o final do Verão o surpreendia em meditações sobre política, religião, sulfatos, lagares e creio que o sentido da vida, na companhia de Guerra Junqueiro, que ele recordava como uma espécie de espectro vigiando a pátria – que, anos antes, se encarregara de dinamitar devidamente. Regressava por vezes minado por essa melancolia – que ocultava nos cabazes carregados de fruta, caça, espargos do monte, cogumelos, e outras ofertas de ocasião ao longo das suas visitas de administrador, contabilista, correspondente (os clientes ingleses prezavam tanto os seus livros de contabilidade quanto a sua epistolografia, fixada por uma caligrafia elegante, ligeiramente inclinada, sem arabescos, onde encontravam citações de Shakespeare ou Disraeli) ou até conselheiro espiritual (o isolamento entre as montanhas era perigoso).

Seja como for, o meu avô envelheceu devagar. A II Guerra abalou-o bastante e os seus cabelos ficaram definitivamente grisalhos por essa altura, como se quisesse mostrar-se solidário com os Aliados e, de entre estes, os seus clientes principais. Era um homem suave que conservou os amigos até ao fim da vida e para além dela, e que tratava por tu os netos que, no Verão, invadiam o casarão de Ponte de Lima com recomendações de mostrarem boas maneiras à mesa.

Numa família miguelista que prezava as suas relíquias do velho regime, o meu avô era considerado um excêntrico e quase um democrata; a partir do momento em que se dedicou “aos negócios” uma ventania arejou os corredores da genealogia: ele mostrara, muito antes de Adam Smith ser admitido nas estantes do país, que só se é inteiramente livre quando não se depende nem do Estado nem dos governos. Infelizmente, as coisas são como são.

03/12/13

O fim da civilização no Alto Minho

Apercebi-me, com preocupação, de que a minha sobrinha Maria Luísa considera a hipótese de “a civilização” estar a desaparecer. Atribuo o pessimismo a demasiadas declarações do dr. Soares, além de estarmos a atravessar uma estação do ano que não favorece os temperamentos mais entusiastas. A ideia de que “a civilização” tal como a conhecemos está a desaparecer sob uma chuva de ataques dos governos actuais, de mãos dadas com a perfídia do capitalismo em geral, parece-me manifestamente exagerada para quem atravessou duas ou três guerras, crises demográficas, epidemias, vagas de fome e de pobreza extrema e, sobretudo, décadas de infortúnio e insegurança. Abstenho-me, em geral, de comentar “certezas absolutas” e declarações que o tempo, com vagar, se encarregará de desmentir.

Tentando minimizar o seu estado de alma, lembrei que “o problema” é que se vive hoje sob o efeito de uma velocidade que exige mudanças permanentes, alterações constantes, novidades diárias – e que uma pequena notícia, qualquer que ela seja, é ampliada pela internet com efeitos devastadores, comentada por profissionais da catástrofe e, sobretudo, por pessoas que não consultam um simples manual de História. A eleitora esquerdista da família, num inesperado arroubo de vencida da vida, supôs por instantes que eu, um velho eleitor minhoto, era agora um adepto da censura:

“E o tio quer calar toda a gente?” Precisamente, lembrei que uma das desvantagens do nosso tempo – a velocidade – tinha como efeito benéfico o abandonarem-se depressa as estultícias do presente; daqui a um par de anos, outras substituirão as de agora, e supõe-se que com algum proveito – e, portanto, “calar toda a gente” foi sempre uma medida desnecessária.

O tempo demora a passar e é cruel. “A civilização” é obra de séculos e, felizmente, não há só uma, como aprendeu com felicidade o Tio Alberto, gastrónomo e bibliófilo de São Pedro de Arcos, que descobriu a paixão da sua vida nas margens do Cáspio; por causa disso, tentou aprender persa – mas era fraco para o desenho, ou seja, tinha a mão treinada para outra “civilização”. Já o dr. Afonso Costa, como lembrava a Tia Benedita durante os seus arroubos de ultramontana resignada (viveu quase toda a vida refugiada no perímetro do velho casarão de Ponte de Lima), acreditava que em duas gerações acabava com a religião. O velho Doutor Homem, meu pai, sorria aos seus receios; e trinta anos depois da morte do demagogo, a Tia Benedita ainda rezava o terço. A civilização mantinha os seus pobres pilares.

03/12/13

Envelhecer devagar em Moledo

 

O velho Doutor Homem, meu pai, trabalhou até aos setenta, um pouco como era costume na família. A parte dela que não desapareceu no interior do Minho (uma minoria) parece ter simpatizado vagamente com o cartismo, por conveniência e cinismo; a que sobreviveu, devia ter sido Regeneradora depois da década de sessenta, mas tinha uma certa noção do ridículo, e manteve-se à parte, ultrapassando a República, a tentação do dr. Salazar e chegando até aqui incólume. A partir de certa altura, como recordava a Tia Benedita (a matriarca ultramontana), os Homem viveram do seu trabalho limitando-se a conservar em condições o retrato do Senhor Dom Miguel ao fundo do corredor do casarão de Ponte de Lima – hoje, é a minha sobrinha Maria Luísa, a eleitora esquerdista da família, que o leva periodicamente para observação.

Somos demasiados, demais – os velhos. Isso contrasta com um mundo cada vez mais adolescente, pouco dado a sacrifícios e onde o optimismo se reduz a acreditar que se pode viver com mais facilidade e com quase nenhuma doença, com corpos perfeitos até depois dos cinquenta. Não pode. Eu trabalhei até aos setenta; o meu avô, que percorreu o vale do Douro cuidando da contabilidade dos seus clientes, retirou-se aos setenta e dois, porque sofria de doenças do século passado. A minha família (sobretudo as minhas irmãs) sempre pensou que eu tinha nascido depois da adolescência; eu tento explicar que o grande segredo é aceitar que se envelhece, ao contrário do que sucede num país onde se passa radicalmente do acne juvenil (e das suas ilusões) para o reumatismo e para a hipocondria.

A promessa de uma vida eterna é o prémio – e a ilusão – dos tempos modernos e de uma sociedade adolescente. Não é preciso ter lido Cícero ou Séneca para compreender que não é a idade ou o conhecimento que conferem sabedoria ao ser humano – mas o tempo, que recomenda prudência e intensidade em simultâneo. Numa família conservadora como a nossa, preferimos exibir a prudência e dissimular a intensidade, mas era pura hipocrisia: apesar dos esforços em prolongar a vida até à eternidade, o que resulta é que se encurtou a “vida útil”, transformando os velhos em “grupos de risco”, incapazes de consumir, de enriquecer e de serem belos.

A minha sobrinha Maria Luísa inveja-me a biblioteca, que eu lhe cedo aos poucos. Mas insiste que devo acompanhá-la em passeios de sábado pelas dunas de Moledo; ela acha que um velho tem direito a prolongar a vida até onde chegar a beira do mar.

 

03/12/13

Previsões gerais de finanças públicas

 

O velho Doutor Homem, meu pai, gostava de jantar cedo. Ele acreditava nas virtudes do pequeno intervalo que separava a hora da refeição do normal serão televisivo cujo ponto alto era o boletim meteorológico do Dr. Anthímio de Azevedo; portanto, levantava-se da mesa, caminhava pausadamente até à varanda, de onde – olhando para o céu, verificando a existência de vento – recolhia dados para compor a sua própria previsão meteorológica, e permanecia de pé o tempo que julgava suficiente para que a digestão iniciasse as suas convulsões. Só depois desses minutos consagrados ao físico se sentava diante da televisão para ter uma ideia de como ia o mundo (o Daily Telegraph dava-lhe um resumo cómodo durante o fim de semana) e de como poderia evitá-lo.

Em Moledo, o regime mantém-se com esta regularidade, embora sem o contributo do meteorologista e com o pessimismo mais morigerado (por pudor, apenas). Só Dona Elaine, a governanta deste eremitério, compreende o meu cepticismo de telespectador: “O senhor doutor parece que não acredita nisto.” A questão está em que, hoje em dia, todos os telejornais ocupam metade do seu tempo com aulas de finanças públicas. A matéria interessou-me durante várias décadas a par do direito bancário, a especialidade do escritório da família; porém, hoje, mudando de um canal televisivo para outro, apenas se multiplica a monotonia de percentagens, milhões e horror ao défice, tudo lido por apresentadoras e apresentadores (a minha sobrinha sugere que mencione ambos) que me não parecem familiarizados com máquinas de calcular ou com a memória de tabuadas e álgebra clássica. Ou seja, boa parte “da crise” é-nos servida por jovens licenciados que tanto comentam – e com idêntica ignorância – o sistema financeiro internacional (apesar de só recentemente terem descoberto a turbulência associada à palavra ‘défice’) como a deficiente qualidade das automotoras regionais da Linha do Minho (apesar de nunca terem apreciado a beleza extraordinária do percurso entre Darque e Cerveira).

Acontece que na base do mecanismo que regula as finanças públicas estão operações simples (e, infelizmente, indesmentíveis) que só o excesso de “especialistas” torna complicadas como se tivessem vontade própria. O resto são pequenos disparates, como o de dizer que estão por aí “previsões macroeconómicas irrealistas”; ao fim de trinta anos a ler “planos de fomento”, “planos de investimento”, quadros de “orçamentos plurianuais” e outras primícias do género, confesso que nunca vi senão “previsões irrealistas”. O Dr. Anthímio era mais certeiro.

03/12/13

O mar melancólico do Minho

O velho Doutor Homem, meu pai, achava pouca graça à melancolia de meia-idade e atribuía-a ao medo e à preguiça. Uma coisa (a preguiça), aliás, conduzia à outra; por isso, raramente cedia à tentação de entristecer – o que viesse, chegaria. O seu carácter pouco literário, mas muito cheio de livros, encarregou-se de provar que só a morte, a maldade e a vulgaridade eram fatais como o destino. O resto eram contingências. Como poderia o leitor de Yeats e de Tennyson escapar às garras da melancolia? Da mesma forma que as neblinas da Ínsua de Moledo não me provocam tristeza, mas apenas o receio do reumático, que vejo como uma ameaça, rompendo os pinhais que sobem pela colina e aproximando-se das penumbras casa, ao fim da tarde.

Às vezes penso que serei castigado pela minha leviandade, mas temo que o Juízo Final me acolha antes como personagem de comédia, em vez de avaliar os meus dotes poéticos. A minha sobrinha Maria Luísa não compreende como posso rir de coisas sérias – ela acha que um reaccionário, e ainda por cima minhoto, deve assemelhar-se a um cónego do Cabido da Sé, vigiando a vida segundo a lógica deste e do outro mundo. Ela entende que as coisas sérias têm a ver com o sentido da vida ou com os gemidos diante da depravação. Ambas as coisas me enternecem, mas não costumo ceder-lhes. Com esta idade descobri já, e abandonei, as ilusões acerca do destino: as coisas são como são. E a dissolução dos costumes, a discussão sobre como as pessoas são hoje mais ignorantes ou inúteis, os grandes debates sobre a condição humana – lamento, mas escuto-os há uma eternidade. A melancolia não me apanha, e li Camilo o suficiente para que os arvoredos do Minho sejam apenas um cenário e não a máscara de um sofrimento que não estou condenado a viver. Mesmo assim, a minha sobrinha acha que eu deveria conservar algum tento na língua.

Ora, relembro-lhe eu, relembrando também os destemidos de outras épocas, se há uma coisa que não choro são as lágrimas de outrora. Foi Dona Ester, minha mãe, que me protege dessa tentação ao ensinar-me que não se deve sofrer demasiado por amor. Eles vão e vêm. É uma palavra gasta.

É por isso que desde há uma semana não leio senão Camilo, à procura de sarcasmos que me fiquem baratos. O riso é uma defesa muito séria contra a passagem dos anos. A minha sobrinha vai ficar surpreendida com o desprendimento de um reaccionário que habita as margens do mar mais melancólico do planeta. Assim seja.

03/12/13

Passeios a pé com receita médica

Hoje em dia atribuem-se grandes virtudes aos passeios a pé, como se fossem prescritos por receita médica. Os sábados de Moledo, precisamente, são muito dados ao temperamento peripatético; há uma certa melancolia na passagem das dunas, sobretudo quando chega a neblina da tarde, a que o Outono dá uma certa solenidade.

Uma das minhas irmãs garante mesmo que os benefícios das caminhadas se alargam a todos os ramos da medicina, da dermatologia e da cardiologia até aos ramos vastíssimos da otorrinolaringologia, além de afugentar a preguiça, que é o estado natural do género humano. Não me surpreende esta fé; bem vistas as coisas, Dona Ester, minha mãe, educou-nos num pressuposto semelhante, o de que o iodo, fornecido pelas praias, era o melhor dos medicamentos. A questão era, no entanto, um pouco mais complexa: não se tratava de um iodo qualquer, fornecido por qualquer mar; para a existência ‘desse’ iodo saudável era necessário que ‘esse’ mar estivesse acompanhado de uma banda de areia – uma praia – onde no Verão era permitido largar crianças e adolescentes para bronzeamento geral e que no Inverno dispensaria uma espécie de suplemento respiratório que qualquer pulmão agradecia. Esta doutrina não sei se alguma vez foi reconhecida pela Medicina, mas era a ortodoxia seguida em casa. Dona Ester, minha mãe, acreditava que rapazes bronzeados eram mais saudáveis e que raparigas bronzeadas não sofriam de melancolia. No geral, estava certa.

Samuel Johnson (a quem o velho Doutor Homem, meu pai, atribuía quase todos os fundamentos de sabedoria literária desde o século XVII) que, em busca de tranquilidade espiritual, caminhou pelas montanhas e promontórios ao longo das Hébridas, era um moderno; hoje, aí o teríamos, acompanhado do biógrafo James Boswell, perfazendo sem dificuldade a distância entre o molhe de Vila Praia de Âncora e a rua onde fica a biblioteca de Caminha (a Dra. Celina requisitá-lo-ia, certamente), elogiando – de caminho – o iodo que apenas existe, com esta intensidade, à passagem em Moledo.

O velho Doutor Homem, meu pai, dava grandes passeios a pé. Sempre me pareceu gratificante esse seu gosto, que correspondia na perfeição à bela imagem de homem solitário, capaz de identificar quase todo o arvoredo entre Ponte de Lima e São Pedro de Arcos, onde vivia o Tio Alberto que, a despeito de viver no meio de tanto oxigénio, era incapaz de andar mais de duzentos metros seguidos com o argumento de que lhe entupia os pulmões. 

03/12/13

Salvar o mundo na meia idade

 

 

O velho Doutor Homem, meu pai, achava que era impossível salvar o mundo – não porque não existisse gente com habilidades, assim lhes fornecessem meios, mas porque se tratava, em si mesma, de uma tarefa indesejável. À preguiça que marcava a biografia dos Homem de várias gerações e latitudes juntava-se o pessimismo incurável do velho causídico. Ao longo do fim da nossa adolescência e, mesmo, para lá dela, tentámos arrancar-lhe (eu e os meus irmãos) uma discussão sobre o assunto – mudar o mundo. Em vão. A ideia de que o universo se podia organizar de outra maneira, de que os sistemas políticos são corrigíveis ou de que as “sociedades” (uma palavra que ele nunca utilizaria porque descria da sua existência) se podiam modificar pela acção de uma classe dirigente esclarecida não lhe eram estranhas nem antipáticas; simplesmente estava voltado para temas menos leais para com o seu semelhante. Tendo vivido durante a República, assistido a vários desmandos que culminaram com a escolha do dr. Salazar, coleccionado memórias dos anos de fogo da pátria, o velho Doutor Homem, meu pai, tentava convencer-nos, à mesa, de que o país era um apeadeiro acolhedor para quem gostasse de legumes frescos, de um clima dotado de alguma razoabilidade e de monumentos à espera de serem cuidados. Mas, no restante, pouco havia a fazer: nem na economia, nem na organização política, nem nas letras, nem nas boas maneiras, salvando-se talvez o Vinho do Porto (o meu avô paterno era administrador de quintas no Douro) e, no extremo, o seu alfaiate portuense – que o acompanhou até ao fim da vida, desenhando-lhe fatos de acordo com os figurinos de Londres, que ele acreditava albergar os últimos seres elegantes do planeta, em redor do n.º 32 de Saville Row, onde ficava a casa Chester Barrie (o velho Doutor Homem, meu pai, asseverava ter conhecido Myron Ackerman, filho do fundador do pronto-a-vestir londrino).

A salvação do mundo estava, portanto, fora dos seus desígnios. Desconfiava sobretudo “dos intelectuais”, que – como grande leitor e bibliófilo – decidira serem pessoas pouco confiáveis, decepcionantes e amargas, capazes de tudo para se inebriarem da sua vaidade ou para malbaratarem uma sensibilidade plagiada em vários séculos de leituras deficientes. Este pessimismo dava-lhe parte da sua infinita bonomia. Não fosse a sua elegância de dândi, creio que às vezes se julgava Churchill pintando aguarelas em Marraquexe enquanto a guerra consumia a Europa do outro lado do Mediterrâneo. Não, não chegaria a tanto. A vaidade dos Homem é capaz de ter limites, suponho.

03/12/13

Salvar o mundo na meia idade

O velho Doutor Homem, meu pai, achava que era impossível salvar o mundo – não porque não existisse gente com habilidades, assim lhes fornecessem meios, mas porque se tratava, em si mesma, de uma tarefa indesejável. À preguiça que marcava a biografia dos Homem de várias gerações e latitudes juntava-se o pessimismo incurável do velho causídico. Ao longo do fim da nossa adolescência e, mesmo, para lá dela, tentámos arrancar-lhe (eu e os meus irmãos) uma discussão sobre o assunto – mudar o mundo. Em vão. A ideia de que o universo se podia organizar de outra maneira, de que os sistemas políticos são corrigíveis ou de que as “sociedades” (uma palavra que ele nunca utilizaria porque descria da sua existência) se podiam modificar pela acção de uma classe dirigente esclarecida não lhe eram estranhas nem antipáticas; simplesmente estava voltado para temas menos leais para com o seu semelhante. Tendo vivido durante a República, assistido a vários desmandos que culminaram com a escolha do dr. Salazar, coleccionado memórias dos anos de fogo da pátria, o velho Doutor Homem, meu pai, tentava convencer-nos, à mesa, de que o país era um apeadeiro acolhedor para quem gostasse de legumes frescos, de um clima dotado de alguma razoabilidade e de monumentos à espera de serem cuidados. Mas, no restante, pouco havia a fazer: nem na economia, nem na organização política, nem nas letras, nem nas boas maneiras, salvando-se talvez o Vinho do Porto (o meu avô paterno era administrador de quintas no Douro) e, no extremo, o seu alfaiate portuense – que o acompanhou até ao fim da vida, desenhando-lhe fatos de acordo com os figurinos de Londres, que ele acreditava albergar os últimos seres elegantes do planeta, em redor do n.º 32 de Saville Row, onde ficava a casa Chester Barrie (o velho Doutor Homem, meu pai, asseverava ter conhecido Myron Ackerman, filho do fundador do pronto-a-vestir londrino).

A salvação do mundo estava, portanto, fora dos seus desígnios. Desconfiava sobretudo “dos intelectuais”, que – como grande leitor e bibliófilo – decidira serem pessoas pouco confiáveis, decepcionantes e amargas, capazes de tudo para se inebriarem da sua vaidade ou para malbaratarem uma sensibilidade plagiada em vários séculos de leituras deficientes. Este pessimismo dava-lhe parte da sua infinita bonomia. Não fosse a sua elegância de dândi, creio que às vezes se julgava Churchill pintando aguarelas em Marraquexe enquanto a guerra consumia a Europa do outro lado do Mediterrâneo. Não, não chegaria a tanto. A vaidade dos Homem é capaz de ter limites, suponho.

03/12/13

Uma holandesa no mar de Moledo

Dona Ester, minha mãe, não dava muito crédito a matérias do foro sentimental. Durante anos, isso aproximou-a da tutelar frieza da Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, sobre quem se diz que congelava as lágrimas das figuras de santos em toda a diocese de Viana. Ambas as imagens são falsas e, muito adequadamente, exageradas; nem a Tia Benedita tinha essa capacidade mediúnica de conhecer todas as muitas esculturas e modelos de barro e madeira do Alto Minho, nem Dona Ester era feita do gesso com que se moldam as almas insensíveis.

Cheguei, pois, onde queria: à palavra “alma”. Nisto elas diferiam: a Tia Benedita lutava, com o crucifixo, as novenas e a aflição diante da República e do bolchevismo, pela salvação das almas (era necessário ter em conta a relativa modernidade do conceito e da fama do purgatório); Dona Ester limitava-se a ignorar os seus achaques como se estes fossem doenças impróprias para comentar em família: onde o temperamento nacional via uma razão para queixume e meditação, Dona Ester procurava um deslize a tratar com iodo, praia, passeios a pé e mudança de clima.

Esta posologia foi aplicada com regularidade a todos os seus filhos com a intenção de os poupar à palidez das crianças da época, que ela concebia como uma espécie de desmazelo moral. Mesmo diante do mar de Inverno, que era rigoroso como o deste ano, tempestuoso e frio, era necessário que enfrentássemos a provação – e, a pé ou de bicicleta, o nosso treino semanal obrigava-nos a sorver os ares que desciam da serra ou as ventanias que acompanhavam a linha do litoral como se fossem certificadas por receita médica. Lembro-me deste cenário a propósito da namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, que nos visita cada vez com mais frequência – e que insiste em mergulhar nas águas frias de Moledo pelo menos uma vez por semana ou, em alternativa, quando um pouco de sol ilumina o caminho até Vila Praia de Âncora (Isabelle vem da Frísia, onde o mar, além de frio, não tem as cores do nosso oceano particular, aquele trecho atlântico que rodeia o forte da Ínsua), despertando invejas fatais.

Dra. Celina, a nossa bibliotecária de Caminha, veio tomar café na tarde do domingo passado e (a meia voz) sugeriu, sugeriu que, a uma holandesa, o mar de Moledo há-de parecer-lhe “quase dos trópicos”. Maria Luísa, agasalhada de lã mas sem os cuidados da Dra. Celina, declarou que a indiferença ao frio tinha a ver uma doença qualquer. Nem eu nem a Dra. Celina quisemos saber. 

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