Sobre a velha e a nova ortografia
É muito raro – ou porque já não tenho idade ou porque nunca tive feitio –eu pisar o risco. A última vez que fui acusado de “pisar o risco” ocorreu há uns meses, quando a D. Fernanda Cachão me telefonou do jornal, em certa terça-feira tardia, lembrando-me da necessidade de “mandar a crónica”. D. Fernanda foi generosa e tentou diminuir a minha culpa, associando-se ao cronista e informando que “estávamos”, ambos, “a pisar o risco, senhor doutor”.
Foi por isso com surpresa que atendi o seu telefonema na semana passada, em vésperas do Natal, porque a crónica “já tinha seguido” (o que prova o quanto me habituei à linguagem do jornalismo moderno, feito de prazos e de contagem de palavras). Não era isso; D. Fernanda agradecia a crónica mas lembrava que o jornal ia adoptar o Acordo Ortográfico – e que era preciso decidir se eu preferia “a antiga ortografia”.
O assunto nunca se tinha colocado. Vagamente, por piada, à mesa e em hora de maledicência, falava-se do Acordo Ortográfico como de uma baleia que tivesse dado à costa nos areais de Ofir. Para todos os efeitos, sempre julguei que o Acordo Ortográfico fosse uma excentricidade do professor Cavaco e do governo do eng.º Sócrates (porque assentava bem a ambos – a um, na falta de sensibilidade; a outro, na ignorância), com a ajuda de filólogos a quem o Prof. Lindley Cintra tinha dado má nota. O caso é que sempre mantivemos que o assunto não era para levar a sério. Engano profundo, o meu; a Dra. Celina, a nossa bibliotecária de Caminha, informou-me que era para tomar a sério o atrevimento e que havia, mesmo, um decreto a marcar o prazo para mudarmos de alfabeto.
Ora, de entre as coisas que me não assustaram ao longo da vida fazem parte a ortografia brasileira e as mudanças na ortografia portuguesa. A Tia Benedita, por exemplo, nunca mudou de ortografia supondo que o senhor Dom Miguel não a teria autorizado; o tio Alberto, bibliófilo e gastrónomo de S. Pedro de Arcos, escrevia tão bem que não precisava de regras ortográficas; o velho Doutor Homem, meu pai, recorria a dicionários e a Camilo para tirar dúvidas, embora continuasse a pensar em inglês; quanto aos meus sobrinhos, tirando Maria Luísa, suponho que não escrevem. Quando, no escritório, chegava carta dos nossos correspondentes brasileiros, limitávamo-nos a sorrir do samba que vinha nas entrelinhas e da sintaxe do século XIX.
“E optamos por que ortografia?”, perguntava D. Fernanda, angustiada, do outro lado. “Pela antiga”, murmurei com medo de ser repreendido. “Pela da Tia Benedita?” Antes fosse.