Uma holandesa no mar de Moledo
Dona Ester, minha mãe, não dava muito crédito a matérias do foro sentimental. Durante anos, isso aproximou-a da tutelar frieza da Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, sobre quem se diz que congelava as lágrimas das figuras de santos em toda a diocese de Viana. Ambas as imagens são falsas e, muito adequadamente, exageradas; nem a Tia Benedita tinha essa capacidade mediúnica de conhecer todas as muitas esculturas e modelos de barro e madeira do Alto Minho, nem Dona Ester era feita do gesso com que se moldam as almas insensíveis.
Cheguei, pois, onde queria: à palavra “alma”. Nisto elas diferiam: a Tia Benedita lutava, com o crucifixo, as novenas e a aflição diante da República e do bolchevismo, pela salvação das almas (era necessário ter em conta a relativa modernidade do conceito e da fama do purgatório); Dona Ester limitava-se a ignorar os seus achaques como se estes fossem doenças impróprias para comentar em família: onde o temperamento nacional via uma razão para queixume e meditação, Dona Ester procurava um deslize a tratar com iodo, praia, passeios a pé e mudança de clima.
Esta posologia foi aplicada com regularidade a todos os seus filhos com a intenção de os poupar à palidez das crianças da época, que ela concebia como uma espécie de desmazelo moral. Mesmo diante do mar de Inverno, que era rigoroso como o deste ano, tempestuoso e frio, era necessário que enfrentássemos a provação – e, a pé ou de bicicleta, o nosso treino semanal obrigava-nos a sorver os ares que desciam da serra ou as ventanias que acompanhavam a linha do litoral como se fossem certificadas por receita médica. Lembro-me deste cenário a propósito da namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, que nos visita cada vez com mais frequência – e que insiste em mergulhar nas águas frias de Moledo pelo menos uma vez por semana ou, em alternativa, quando um pouco de sol ilumina o caminho até Vila Praia de Âncora (Isabelle vem da Frísia, onde o mar, além de frio, não tem as cores do nosso oceano particular, aquele trecho atlântico que rodeia o forte da Ínsua), despertando invejas fatais.
Dra. Celina, a nossa bibliotecária de Caminha, veio tomar café na tarde do domingo passado e (a meia voz) sugeriu, sugeriu que, a uma holandesa, o mar de Moledo há-de parecer-lhe “quase dos trópicos”. Maria Luísa, agasalhada de lã mas sem os cuidados da Dra. Celina, declarou que a indiferença ao frio tinha a ver uma doença qualquer. Nem eu nem a Dra. Celina quisemos saber.