A pátria familiar e as saudades de Dona Elaine
«O velho Doutor Homem, meu pai, sonhava com os alfaiates de Londres; Dona Elaine, suspira quando recorda as canções de Dick Farney sob o crepúsculo da Avenida Rio Branco, no Rio.»
De vez em quando, Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, declara que tem saudades. Mais do que pela menção às saudades, propriamente ditas, é o timbre que assevera a autenticidade da proclamação, entre o pequeno-almoço e aquele momento em que o ar da manhã entra pela porta da cozinha, juntamente com o ruído da chuva no pinhal junto de casa e o ondular permanente do mar do Minho, cavo e familiar. Emigrante no Brasil, para onde foi com os pais, que se estabeleceram como comerciantes no Rio, Dona Elaine regressou a Cerveira depois de ter enviuvado. Trouxe com ela o essencial: dinheiro para reconstruir a modesta casa dos seus maiores (que, assim, deixou de ser modesta sem abandonar a sua aldeia natal), as arrecadas e algum vício do mundo – aquilo que, à sua medida, se pode considerar o pórtico de algum cosmopolitismo. O último quartel do século XX já não era, no entanto, o tempo dos “brasileiros” de Camilo e do Porto, Famalicão, Braga ou Barcelos. O tio Alfredo, que regressou dos sertões só depois da morte do dr. Salazar (e que se manteve assinante da Gazeta do Pernambuco), amealhara o suficiente para se instalar na sua quinta de Afife – e sofria das mesmas saudades, como se a pátria lhe tolhesse os movimentos ou lhe provocasse o tédio dos insones.
Os portugueses amam terrivelmente o seu país, mas amiúde gostariam que ele fosse outro qualquer. Afastados da sua horta, choram as harpas dependuradas sob os salgueiros, como os exilados de Sião; regressados, declaram que têm saudades. Esta contradição não é aparente – é verdadeira, salvo no caso do velho Doutor Homem, meu pai, que passou os melhores anos da sua vida imaginando ser um lorde inglês que aos sábados discreteava com o Dr. Samuel Johnson acerca de genealogia, lápides funerárias e questões de geografia das Hébridas. Ai dele, limitava-se a alimentar uma família numerosa e a receber o Daily Telegraph em pacotes remetidos do Clube Britânico.
Hoje, a emigração é tratada como um flagelo – como se os portugueses sofressem perdidamente por cada minuto passado fora da linha de fronteira. A verdade é que fomos sempre emigrantes, ou por motivos políticos ou para ludibriar a pobreza. Tirando a Tia Benedita, que considerava “estrangeiro” quase tudo o que acontecera depois da Concessão de Evoramonte, ou que a afastava do casarão de granito de Ponte de Lima, o “estrangeiro” foi sempre a nossa miragem. O velho Doutor Homem, meu pai, sonhava com os alfaiates de Londres; Dona Elaine, suspira quando recorda as canções de Dick Farney sob o crepúsculo da Avenida Rio Branco, no Rio.