Dona Elaine e a teoria da literatura
Dona Elaine acha que os livros velhos constituem contribuições decisivas para doenças conhecidas (a asma, a sinusite, a rinite e a diminuição da vista) e desconhecidas (como a ignorância, por exemplo). Alguns livros das minhas estantes foram conservados na biblioteca de família desde a minha juventude. Na altura sabíamos ler, dividir orações, comentar e sermos tementes aos autores maiores.
Dona Elaine, a governanta deste eremitério, está inconsolável porque terminou uma das suas telenovelas preferidas com um final de que não gostou. O comentário aconteceu uma destas manhãs, à mesa do pequeno-almoço de torradas e café de cevada. Dado ser ainda cedo e a chuva ter regressado aos pinhais de Moledo para os informar da chegada definitiva do Outono, pensei explicar-lhe que isso me aconteceu várias vezes ao terminar um livro – uma personagem que desaparece antes do (meu) tempo, uma acção despropositada, um desfecho sentimental estapafúrdio, uma morte provavelmente injusta. O mundo da literatura é prodigioso em más soluções para histórias fictícias e para histórias reais.
Mas, felizmente, uma brisa de bom senso impediu-me a algaraviada, travando a tempo de deixar a antiga emigrante do Rio de Janeiro a braços com um bibliómano sem nenhuma ligação ao mundo real. As telenovelas portuguesas, de facto, inquietam-me bastante. Dona Elaine não perde uma e conhece os nomes das personagens e a sua genealogia mais longínqua, praticamente da mesma forma que o Tio Alberto conhecia os apelidos das cantoras de ópera do seu tempo. De vez em quando (de mês a mês) “finjo não ver” um episódio – e, mesmo pelo canto do olho, toda a gente me parece deprimida, zangada ou a necessitar de conserto gramatical. Creio que é muito pior do que na vida real, onde podemos dar-nos ao luxo de desviar o olhar.
Dona Elaine acha que os livros velhos constituem contribuições decisivas para doenças conhecidas (a asma, a sinusite, a rinite e a diminuição da vista) e desconhecidas (como a ignorância, por exemplo). Alguns livros das minhas estantes foram conservados na biblioteca de família desde a minha juventude. Na altura sabíamos ler, dividir orações, comentar e sermos tementes aos autores maiores. Talvez as histórias se repetissem de livro para livro (hoje a memória trai-me frequentemente e há personagens que passam de um livro para outro), da mesma forma que hoje as novelas da televisão se repetem com regularidade; entre ricos e pobres, homens e mulheres, felizes e desgraçados, esperançosos ou desiludidos, o género humano não reinventou o amor nem ultrapassou a morte. Dona Elaine, se tivesse lido os clássicos, não seria mais feliz: limitar-se-ia a conhecer outros nomes para a sua vastíssima curiosidade. Por isso limitei-me a confirmar que a telenovela terminou. Houve gente mais feliz; uma senhora má que matou um cavalheiro igualmente mau. Nada que não venha em Shakespeare, murmurei. Dona Elaine julgou que eu estava a pedir mais café.