O mar de Biarritz e as recordações de um velho
«Dona Ester acreditava que os rapazes bronzeados e as raparigas desempoeiradas eram abençoados pelo iodo e transformavam-se, com o tempo, em gente saudável.»
O velho Doutor Homem, meu pai, e Dona Ester, minha mãe, enamoraram-se em Biarritz num mês de Julho sem história, à beira de uma praia que quase ninguém frequentava porque estava mau tempo e chovia com abundância; o pormenor acabou por aproximá-los. As famílias de ambos tinham o costume de, de dois em dois anos, passar aí uma temporada (duas semanas, uma eternidade). Eram gente moderadamente rica sem a vertigem da fama ou da vulgaridade, e creio que davam passeios pela costa, falando o francês dos romances da época e da má imprensa parisiense. Trinta anos mais tarde, depois dos horrores da II Guerra, a família visitou o lugar – éramos muitos, a viagem era terrível através de uma Espanha sitiada por estradas ruins e vigiada por carabineiros de bigode, e Biarritz já não era o paraíso daquele primeiro quartel do século, procurada por pessoas que sabiam ler e se vestiam para jantar nas varandas dos hotéis. Mas era necessário recordar o episódio. De vez em quando, pelo menos até os meus irmãos e irmãs (éramos cinco no total) terem casado e criado os seus próprios itinerários familiares, fazíamos a peregrinação; eu era o mais velho, ainda não sabia que seria poupado à felicidade do matrimónio e da puericultura, e tornara-me proprietário da caneta Parker com que o velho Doutor Homem, meu pai, assinara o seu assento de casamento.
Ao contrário desse Julho de Biarritz, não me recordo de temporadas inclementes durante os verões da minha adolescência e juventude, passados quase sempre no Minho, ao qual sempre pertenci como um pinheiro melancólico à beira das dunas de Caminha e Moledo. Os invernos eram cruéis e as ventanias e tempestades da Galiza concentravam-se por toda a costa até às rochas de Leça e às ondulações que entravam Douro dentro, transformando a Afurada num cenário de devastação. Conhecíamos o mar e sabíamos como os arredores do Neiva, de Montedor ou de Âncora podiam ser perigosos.
No Verão, Dona Ester lançava-nos nos areais de Afife para que nos bronzeássemos e a pele secasse com a água salgada a que atribuía virtudes curativas e prolongadas. Dona Ester acreditava que os rapazes bronzeados e as raparigas desempoeiradas eram abençoados pelo iodo e transformavam-se, com o tempo, em gente saudável.
Na semana passada recordei esses momentos, como um velho atacado pelo demónio sentimental. A minha sobrinha Maria Luísa mencionou os temporais, com honra de televisão e alertas vermelhos. Lembrei que não se pode querer viver debruçado sobre o mar sem considerar que é necessário protegermo-nos dele.
Publicado no Correio da Manhã | Domingo